Sala de Exposições da Escola das Artes - UCP, Porto
(re)pensar: sobre a memória do tempo e do espaço
No trabalho de Pedro Tudela coexistem diversas práticas artísticas: a escultura, o desenho, a pintura, a música, o som, a instalação e a improvisação, que no âmbito da sua obra pode ser entendida como uma estrutura de pensamento assente em diversas modalidades de investigação e numa permanente acção experimental. A exposição intitulada “Partituras e Objectos” agrega estas práticas numa construção escultórica e sonora que decorre de uma concepção colaborativa da obra de arte, bem como dos processos que esta metodologia envolve no campo relacional. Esta lógica de interacção e de relação inicia-se com a participação dos alunos da Universidade Católica do Porto nas gravações das peças sonoras, e desenvolve-se posteriormente com a fruição pública da obra enquanto dispositivo imersivo na exposição, com uma estrutura de base geométrica que o corpo sonoro converte numa espacialidade orgânica sem princípio nem fim.
Este projecto percorre um itinerário complexo, mas duas acções simultâneas são absolutamente essenciais: a primeira, pela pesquisa de uma quantidade de partituras de diferentes géneros e estilos musicais, como composições clássicas, contemporâneas e outras; a segunda, pela importância da recolha e selecção de objectos de proveniência diversa, como ferramentas de uso tradicional e manual, por exemplo a tesoura de poda ou a escova, e outros sem função anterior identificável. Nestas duas acções conjugam-se duas práticas artísticas de cariz duchampiano: a apropriação e o objecto encontrado e integrado no processo de trabalho, o objet trouvé. Tanto as partituras como os objectos são intervencionados pelo artista. As partituras são sujeitas a uma espécie de jogo, um método que tem a sua raiz na fonética da literatura e da poesia, o método oulipiano, em que Tudela recorta e reorganiza aleatoriamente a forma discursiva da linguagem musical inscrita em cada partitura, obtendo deste modo um conjunto de novas partituras, um procedimento também próximo do universo plástico e visual que poderia ser repetido infinitamente. Sob este aspecto, a ideia de infinitude está directamente relacionada com a expansão de um som no espaço, como se o som se prologasse para lá dos limites desse espaço imaginário e arquitectónico, determinado pela figura do quadrado perfeito e dos seus eixos medianos, do qual se obtêm oito pontos. Esse modelo geométrico, enquanto conceito espacial, é sujeito a um movimento de rotação que o duplica, como um rebatimento próximo de uma prática escultórica ou da representação pictórica de um gesto, como por exemplo na série de obras, da década de 1960, do artista Jasper Johns, intituladas “Device”. A soma destes dois valores resulta de uma acção em que a matemática e o desenho se cruzam sobre uma prolífica ideia de infinito duplicado (ou de uma sonoridade intermutável), pelo rebatimento vertical do símbolo ∞, que se transforma no algarismo 8, concretizando um círculo perfeito com dezasseis posições que correspondem ao mesmo número de canais áudio na sala de exposição e ao número de objectos musicais utilizados para interpretar e (re)interpretar o mesmo número de novas partituras num processo generativo de (re)composição não-linear, e deste modo eventualmente infinita.
Em todo este processo de criação Pedro Tudela estabelece uma ligação, decorrente de uma prática experimentalista que se foi sedimentando aos longo dos anos, entre as qualidades analógicas dos instrumentos que religam um tempo histórico na envolvência e na memória da práxis do trabalho manual e da sua linguagem técnica, de objectos aparentemente simples, com dispositivos electrónicos suportados por uma matriz digital que se encontra em permanente actualização. Estas duas dimensões temporais criam as condições necessárias para a construção da instalação/escultura sonora que explora as qualidades perceptivas do espectador confrontando-o com uma sala negra, como se fosse um espaço sem limites aparentemente visíveis. O som transforma-se numa membrana fluída que reconfigura esse mesmo espaço num instrumento acústico, entre o seu centro, a forma perfeita do círculo, e o espaço dinâmico e transitório do espectador, porque não existe um ponto fixo de escuta. Deste modo o corpo humano, também presente na memória dos objectos expostos sobre a parede e instalados sobre um pentagrama desenhado a giz branco pelo artista, é afectado por uma espécie de pressão osmótica, vibrátil e tensional. Esse corpo é em cada momento do seu trânsito no espaço simultaneamente parte do complexo instrumental e observador de um processo que rememora outros sons, resguardados nesses objectos que se dispõem numa metonímia de notas musicais que escrevem uma pauta geradora de uma obra que se desenvolve sob um modo generativo, como se a reconfiguração da linguagem, iniciada na alteração das primeiras partituras, denotasse uma intermitência da mão e do pensamento, do acto que recorta, desenha e transforma, e do estímulo relacional que o Outro, seja durante a sua criação ou na sua fruição espacial, constitui como alteridade num correlato espácio-temporal que se expande infinitamente.
João Silvério (Curador)
Assistentes:
Francisco Antão
João Duarte
Nádia Moura
Rafael Maia