Tres-Pass

CAPC, Coimbra

Entre
Dezoito anos depois, Pedro Tudela regressa ao CAPC com uma exposição que confirma a posição única, já antes perfeitamente discernível, que ocupa no panorama da criação contemporânea nacional.
Errante, o seu trabalho desliza inteligentemente entre meios que cruzam a manufatura e a tecnologia, a plasticidade materializada e a desmaterialização sonora.
Fundamental, na apreensão deste trabalho, é perceber que o seu diálogo não se estabelece no interior das disciplinas que revisita — ou seja, a sua utilização da fotografia não remete para um valor estritamente representacional e compositivo que se ancora na sua tradição, tal como na escultura e na instalação procura sempre desvincular-se dos respetivos cânones —, porque a sua metodologia se aproxima mais de um recoletor compulsivo de estímulos e conceitos que depois dão origem a situações estéticas diversificadas.
Se no decorrer da sua trajetória o corpo radicou como elemento de discursividade catártica, percebemos que essa relação começou a ganhar contornos mais fluidos e abstratos nos últimos anos. Onde a figuralidade e a sua presença mais ou menos metafórica se desenhavam a partir de reflexões carnalizadas na matéria da pintura, da escultura e das instalações, veio a emergir posteriormente um diálogo com o observador, porventura mais complexo porque integrando-o enquanto medida fluída no desenvolvimento de uma apreensão multissensorial.
Pedro Tudela sabe, como poucos, que a epiderme das propostas são um elemento fundamental num primeiro momento recetivo, e daí que o gosto pelos materiais — a madeira, o ferro, a borracha, o néon, o papel, etc. — lhe permita um diálogo que se vê aprofundado em momentos sequentes, por duas ordens de razão primordiais: por um lado, porque vão estabelecer uma relação de contiguidade ou fricção com o espaço envolvente, por outro, porque a dimensão sonora que frequentemente as complementa acaba por sublinhar uma leitura sensorial inusitada.
Espaço e tempo onde irradiam feixes de força que constituem matéria-prima de deslizamentos vitais de significação. Nas fotografias que agora se apresentam, percebemos a irrupção de contrassensos que as retiram de qualquer tipo de narratividade linear. Iconograficamente ambíguas, remetem para situações de disrupção hermenêutica: o contraste dos painéis publicitários, na sua transparência e opacidade inusuais, remete para um não-verismo que retira convencionalidade ao ato fotográfico. Tornam-se, então, composições eminentemente pictóricas onde a possibilidade de atravessamento do olhar constitui o claro leitmotiv que persistirá ao longo do percurso expositivo. Noutra composição fotográfica em que uma imagem aparece igualmente invertida, a evidência temporal nas marcas de pneus e nos rasgos no telão atira-nos para uma dimensão daquilo que foi, mas que não se explicita. A processualidade vista como referente de uma temporalidade difusa. A relação com a paisagem como conceptual. A relação com as imagens de paisagens a preto e branco que se expõem numa sequência vertical intermediada por um dispositivo de espetos de alumínio como aqueles que são utilizados para afugentar pássaros é, por seu turno, extremamente física. A distância da paisagem não vivida, dir-se-ia. Algo que ainda mais veementemente se questiona nas imagens perturbadoras de parlatório onde a comunicação está barrada, ou aquela remanescência de persiana que pendurada num muro perde o seu valor-uso. Iterações de um nonsense visual que, uma vez mais, remetem para a incomunicabilidade como padrão abstrato de relacionamento com o mundo. Esta dimensão abstrata resolve-se decisivamente numa série em que uma superfície com desenhos organicistas que sedimentam uma ideia vitalista da natureza são ladeados, em dípticos horizontalmente alinhados, por superfícies espelhadas que irremediavelmente integram, na sua observação, o espectador. Do apontamento gráfico na sugestão paisagística à evidência espácio-temporal do corpo refletido, circunscreve-se, assim, um território complexo da imagem onde a experiência se transforma em pensamento e o pensamento em matéria plástica vivida. Entre.
Na segunda sala do CAPC, Pedro Tudela apresenta uma instalação que parte do estilhaçamento de uma pesada moldura que se adivinha já com uma certa antiguidade, à qual vai acoplar, e por vezes recobrir, borracha, numa composição espacial que é complementada com os fios da instalação sonora que a remata. A fluidez do desenho dos fios nos seus enrolamentos que percorrem o chão do espaço expositivo ecoa na transição dos materiais quentes que compõem os pedaços de moldura espalhados pelas paredes e a peça central, que é uma espécie de refazer incompleto e experimental da integridade da moldura inicial. De uns altifalantes pousados em pedaços da instalação emanam sons que partem do ruído de uma concha a bater numa pedra. A partir daí, como é habitual nas suas intervenções sonoras, o artista vai tratar — esculpir, dever-se-ia dizer — o som num processo que não pretende ser minimamente ilustrativo, antes pretende desdobrar o campo percetivo numa etérea e espacial referenciação distante ao real.
A reflexão sobre as dimensões plásticas do som reveste-se de uma importância supletiva, exatamente porque permite a criação de uma plataforma tensiva que se desdobra na evidência manipulada daquilo que os materiais reclamam ou, num extremo oposto, lhes nega literalidade. Assim, o que manifestamente se reivindica é o espaço que está entre as coisas e os sentidos: a vivência de rasuras no real e a descoberta desse real numa dimensão revestida de absurdo.
Na terceira e última sala, o artista cria um percurso entre duas imponentes esculturas que cruzam o espaço em diagonais cortantes, rematado por uma fotografia de um edifício que evidencia uma conexão paisagística mediante uma imagem vaga numa das suas superfícies espelhadas. Uma vez mais, a manifestação de um jogo tensivo entre a opticalidade orgânica e a mecânica, entre a memória e a presença. As duas esculturas partem de formas tubulares a partir das quais irrompem dois materiais muito distintos: um panejamento de estatuto quase barroco que verte para o chão em queda cenográfica, e, no outro caso, tubos de luz que irradiam um branco industrial que não deixa de remeter para uma situação minimalista na história da arte recente. Antinomias perceptivas que sublinham o modo como Pedro Tudela sabe conduzir o olhar, sentir e o pensamento do espectador numa espiral que atravessa um tempo sem tempo; uma experiência que se quer resolvida a partir de um conjunto de significados que sedimentam vivências e conhecimentos pessoais — tudo isto num processo de remissão constante entre a obra, os seus hiatos, as suas evidências e as vivências individuais.
Em Tres-Pass, o trespasse recetivo impõe uma imersão no forro da visualidade simplificada, onde a experiência do vivido, do sentido e do interpretado conduz a um alargamento das múltiplas e inesperadas possibilidades de nos situarmos de modo desviante nesse real subjetivamente construído.
Pedro Tudela não nos fala diretamente da solidão, de resistência, de incomunicabilidade, das incongruências no vivido, do estado flutuante da existência. Contudo, tal como rastos espectrais, tudo aí se manifesta, tudo aí reverbera.

Miguel von Hafe Pérez

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